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Cálculo de multidões: ciência contra o “chutômetro”

19/03/2016 às 09h44
Por: Tribuna Popular
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Talvez esteja no Evangelho de Mateus, capítulo 14, versículo 21, a mãe de todas as imprecisões na contagem de pessoas em eventos públicos. A passagem trata do milagre da multiplicação de pães e peixes por Jesus, e diz: "Os que comeram foram cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças". Pobre Mateus se tentasse se safar com esses números nos dias de hoje. Provavelmente seria linchado pelos "romanos" das redes sociais. Como visto nas recentes manifestações contra o governo federal e o PT, é comum haver uma grande discrepância nas estimativas sobre participação de público divulgadas por autoridades, imprensa e organizadores dos eventos. Isso ocorre basicamente por dois motivos: é muito difícil fazer a contagem precisa de uma grande aglomeração de pessoas em uma área aberta; e sempre fortes interesses envolvidos nas estimativas, o que faz com que sejam infladas ou subestimadas.

Na manifestação do dia 13 de março em São Paulo, o Datafolha informou que o protesto reuniu 500.000 pessoas. Para a Polícia Militar, foram 1,4 milhão. Um dos organizadores do evento, o movimento Vem Pra Rua, divulgou que 2,5 milhões de pessoas passaram peal Avenida Paulista naquela tarde de domingo. "Na ausência de estimativas precisas e metodologias claras, o público fica refém de uma visão tisnada pelos interesses das pessoas que fazem as contagens. A sociedade ficaria melhor informada por uma estimativa técnica sem nenhum viés político ou ideológico", escreve em um estudo o professor Paul Yip, especialista em analise de dados da Universidade de Hong Kong.

Especialistas em contagem de multidão e estimativas de público afirmaram à reportagem de VEJA que o número do Datafolha, ainda que não seja 100% preciso, é o mais próximo da realidade por um simples motivo: não cabem 1 milhão de pessoas na Paulista. Rogério Chequer, líder do Vem Pra Rua, afirma que a medição deles é uma estimativa com base no números da PM. "Não temos tecnologia para medir", admitiu. Já a PM do Estado de São Paulo não retornou os contatos da reportagem de VEJA para explicar sua metodologia. O instituto Datafolha, com imagens de satélite e pesquisadores e medições, apurou que a Av. Paulista tem 136.000 metros quadrados disponíveis para a concentração de pessoas - incluindo as vias, calçadas, canteiro central, vão livre do MASP e até mesmo os túneis sob a Praça do Ciclista. Para caber 1 milhão de pessoas neste espaço, seria preciso haver uma concentração de 7,5 pessoas por metro quadrado ao longo de toda a área disponível. É algo inviável.

Para efeito de comparação, nos horários de pico do metrô, a concentração nos vagões é algo entre 6 e 7 pessoas por metro quadrado, e elas mal se movem, acomodam-se umas coladas às outras. Em uma manifestação, com áreas de maior e menor densidade, esse nível de concentração acontece somente em espaços limitados - perto dos carros de som ou das entradas do metrô, por exemplo. Na manifestação do dia 13, "para acomodar 1,5 milhão de pessoas, seria necessário a ocupação não só da Paulista como da Av. da Consolação inteira, sem espaços visíveis, com concentração de sete pessoas por metro quadrado, nível que só se atinge em situações de confinamento", explica Alessandro Janoni, diretor de pesquisas do Datafolha.

O instituto possui registros fotográficos de diferentes concentrações ao longo da via, com espaços pouco ocupados, inclusive com transversais e paralelas abertas para veículos mesmo no horário de pico. Com a evolução dos softwares de georreferenciamento, os cálculos são mais rápidos, com a possibilidade de ajustes em tempo real. É possível, com poucos cliques, excluir a área do vão livre do MASP caso a PM impeça a sua ocupação. Da mesma forma, consegue-se ao longo da medição incluir áreas que não haviam sido considerados no planejamento inicial, como parte da Av. da Consolação e as transversais da Paulista, por exemplo.


Arte - estimativa Datafolha
(VEJA.com/VEJA)

Busca pela precisão - O método de contagem de pessoas em uma multidão mais utilizado foi criado na década de 1960 por um professor da Universidade de Berkley, na Califórnia. Observando os protestos contra a Guerra do Vietnã de sua janela, Herbert Jacobs estabeleceu que para avaliar o tamanho das manifestações era preciso medir a área ocupada e dividi-la por quadrantes. Bastava analisar a concentração de pessoas em cada quadrante para obter a soma final. Em busca da precisão, o chamado método Jacobs evoluiu e a contagem incorporou projeções matemáticas para balancear a diferença entre as áreas de maior e menor densidade.

Apesar das evoluções técnicas, a estimativa de multidões se mantém imprecisa. Na tentativa de aperfeiçoar a contagem e reduzir a margem de erro, o arquiteto Curt Westergard, fundador da empresa Digital Design and Imaging Service (DDIS), desenvolveu uma nova metodologia. Em 2010, a DDIS causou frisson nos EUA ao divulgar a medição de audiência de dois eventos em Washington. Depois disso, seus trabalhos passaram a ser cada vez mais requisitados.

Na época a emissora CBS News contratou a empresa para estimar o número de pessoas se reuniu em uma manifestação organizada por um apresentador da Fox News e em outra coordenada por comediantes. No primeiro evento, os organizadores anunciaram 500.000 pessoas; Westergard e sua equipe contaram 87.000, com uma margem de erro de 9.000 pessoas para mais ou menos. Na segunda manifestação, visivelmente mais numerosa, um dos comediantes brincou que havia 10 milhões de pessoas; mas a DDIS contou 250.000, com uma margem de erro de 10%. "Um ponto de partida básico é saber a capacidade total do local da manifestação. Qualquer estimativa acima do limite físico é um erro", diz Westergard sobre os chutes dos organizadores.

A empresa chegou a aos seus números combinando diferentes dados: a medição prévia das áreas ocupadas; uma série de fotografias aéreas feitas por balões em diferentes momentos da manifestação; a presença de pessoas no local coletando dados quantitativos e qualitativos; e o uso de um modelo em 3D do local do evento, no caso, o National Mall (o grande parque urbano entre o Lincoln Memorial e o Congresso). "O uso da modelagem 3D é importante para captar irregularidades no terreno e pessoas em locais que as fotografias aéreas planas não mostram, como áreas sombreadas ou encobertas por construções e árvores", explica Westergard.

A principal diferença entre o método Jacobs e o da DDIS é que a equipe de Westergard não estabelece uma grade sobre uma superfície plana, mas constrói digitalmente uma rede de pesca sobre um modelo 3D para capturar a topografia e a distribuição mais precisa das pessoas em um determinado local. De 2010 para hoje, a tecnologia já avançou e as medições da DDIS estão ainda mais precisas, com fotos de melhor resolução e maquetes em 3D mais realistas.

O diretor de pesquisa do Datafolha reconhece que com esse modelo "a precisão é maior do que em fotos verticais tradicionais". Conscientes da disputa de interesses que cercam as estimativas de pessoas em manifestações, Westergard e Janoni buscam antídoto na acurácia do tratamento dos dados. "Divulgamos o que os dados mostram", diz o especialista americano. "Não são números exatos, nenhum será. Mas são as estimativas mais embasadas na ciência que podemos ter." Segundo o diretor do Datafolha, buscar números próximos da realidade é questão de "sobrevivência". "Queremos manter nossa reputação de imparcialidade, é fundamental para a sobrevivência de nossa empresa", diz Westergard . "E entendemos que no debate passional que domina o país, a frieza de alguns números venha a chocarn ou irritar", completa Janoni. Chocam e irritam mesmo - mas a ciência deve prevalecer sobre o "chutômetro".

Arte - contagem DDIS

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