No fim de dezembro, o Catania teve a falência decretada, por conta de uma dívida de 56 milhões de euros (cerca de R$ 360 milhões). A notícia envolvendo a equipe jogou luz sobre um fenômeno recorrente na Itália: a quebra de clubes de futebol.
Para se ter ideia, sete dos 20 times que disputam a 1ª divisão italiana na atual temporada já faliram pelo menos uma vez desde a década de 1990:
Outro clube conhecido, o Parma, passou por maus bocados há alguns anos. Entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015, foi vendido duas vezes por um euro. Mesmo com as negociações, não escapou da bancarrota.
– A Itália tem regras, uma espécie de fair play financeiro, que são muito rígidas em relação a pagamento de dívidas. Os clubes não podem conviver com atrasos salariais e pendências fiscais – explica Cesar Grafietti, que vive no país europeu e é especialista em gestão e finanças do esporte.
O endurecimento da fiscalização sobre os cofres não é tão recente. Como citou Rodrigo Capelo ao explicar o funcionamento do fair play financeiro, os italianos já tinham legislação sobre o tema desde o início da década de 1980. Na época, o campeonato local retomou força no cenário europeu e passou a atrair grandes jogadores, como Maradona, Zico, Falcão e Platini.
Vale lembrar que, há bastante tempo, as equipes italianas funcionam como clubes-empresas. Grupos ou pessoas específicas têm o poder, e a saúde dos times depende muito do arsenal financeiro de quem está no comando.
– Há cobranças mais fortes em relação a empresas do que a associações sem fins lucrativos, que dificilmente fecham as portas. É muito mais difícil, por exemplo, você exigir que essas associações paguem dívidas. Por isso, elas conseguem se manter, mesmo com situações financeiras graves – afirma Grafietti.
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Quando a falência de uma equipe é decretada na Itália, começa um rito processual. De início, um interventor assume o clube para investigar as finanças e negociar possíveis soluções, como aporte de dinheiro dos atuais acionistas ou chegada de um novo comprador.
O primeiro objetivo é encontrar garantias financeiras para que o time consiga se manter em campeonatos vigentes, evitando exclusão imediata. Caso haja sucesso, ganha-se mais tempo para achar uma saída definitiva, geralmente a venda da equipe.
Cabe aos novos donos, então, comprovarem a capacidade de sanar dívidas e assumir o controle. Assim, podem salvar a identidade do clube, mantendo nome e até mesmo status em competições disputadas. É o que se chama de “falência controlada”, como aponta Nelson Oliveira, diretor do site “Calciopédia”:
– Os times italianos são constituídos a partir do conceito de tradição esportiva, que, por sua vez, está relacionado a histórico de títulos e desempenho em torneios. Se uma equipe tem 100 milhões em dívidas, mas atrai interesse de um grande investidor, essa pessoa vai comprar toda a tradição, o que foi conquistado até os dias atuais.
Por outro lado, se fontes de renda não forem encontradas a tempo (normalmente, até o fim do prazo de inscrição para o campeonato da temporada seguinte), os clubes encerrarão as atividades. Terão que ser refundados, com nome, escudo e estrutura societária diferentes. Também precisarão disputar divisões inferiores.
– Quando um clube quebra, em uma situação sem volta, a marca dele vai a leilão. Aí, cria-se uma nova. Depois, o dono da equipe pode comprar o nome antigo ou manter o novo, de acordo com o que achar melhor – relata Cesar Grafietti.
O Catania, por exemplo, luta para manter o nome e a tradição esportiva de quem já esteve na primeira divisão em 17 temporadas. Tem até o fim de fevereiro para encontrar um novo comprador. Caso contrário, precisará ganhar outra roupagem e pular da Série C para a D.
Em um cenário onde quebras são frequentes, clubes menores enfrentam ainda mais dificuldades para sobreviverem. Neles, existe uma forte herança do mecenato, em que pessoas tiram dinheiro dos próprios bolsos para investimentos, sem tanta organização.
– Como a fiscalização do fair play é menor em divisões inferiores, esse esquema de mecenato continua presente. As equipes precisam só apresentar garantias de saúde financeira, o que pode esconder problemas sérios, como má gestão ou uso indevido de recursos dos times – conta Nelson Oliveira.
Isso não significa que grandes agremiações estejam livres do sufoco. Atual campeã italiana, a Inter de Milão, por exemplo, viveu situação delicada em 2021. O grupo chinês que está no comando enfrentou dificuldades financeiras, e os nerazzurri precisaram cortar gastos, reduzindo a folha salarial. Insatisfeito com a situação, o técnico Antonio Conte deixou o cargo.
A Juventus tem as contas investigadas por supostas fraudes fiscais. Até o contrato de Cristiano Ronaldo com a Velha Senhora esteve na mira da Promotoria de Turim.
No início do século XXI, Napoli e Fiorentina conheceram o fundo do poço. Fecharam as portas, tiveram outros nomes por um período de tempo e foram rebaixados. Renasceram com a ajuda de novos donos e conseguiram se restabelecer na elite.
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Hoje em dia, entretanto, há uma grande distância entre enfrentar problemas e realmente chegar à falência. A maior capacidade de recuperação dos times grandes também está ligada à entrada de receitas.
– Na Série B, o valor ganho pelos clubes é cerca de oito vezes menor em relação à elite. E a proporção vai se repetindo nas séries abaixo. O Campeonato Italiano, em comparação a outras grandes ligas europeias, tem a menor movimentação de clubes entre as divisões. É muito difícil, por exemplo, um time sair da Série C e conseguir subir para o alto escalão em pouco tempo – afirma Grafietti.
O especialista em gestão e finanças do esporte diz que o segredo para não se complicar é “fazer as coisas de maneira organizada e controlar gastos”.
Nelson Oliveira, por sua vez, crê que equipes podem ser ainda mais respaldadas:
– Ligas e federação devem se esforçar para melhorar a distribuição de renda, atendendo às necessidades de times de menor expressão. É possível também haver mais rigor na análise de quais investidores querem entrar no futebol. Times pequenos servem, às vezes, para lavagem de dinheiro.
Diferentemente do que acontece na Itália, o modelo dos clubes-empresas ainda não é predominante no Brasil. Nos últimos meses, Cruzeiro, sob a tutela de Ronaldo, e Botafogo foram times de massa que avançaram com projetos de Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Para efeito de comparação, a dívida do Catania é consideravelmente menor do que as de Cruzeiro e Botafogo, que estão perto de R$ 1 bilhão.
Será que algum time brasileiro corre riscos?
– Ainda está muito cedo para calcular. Em um primeiro momento, teremos donos tentando fazer as coisas da forma certa, com consciência. Os problemas podem aparecer em médio e longo prazo. Se tivermos 50 clubes como empresas, haverá chances de um deles se complicar, gastando mais do que deveria para tentar subir de divisão, por exemplo – analisa Grafietti.