Quando o novo coronavírus chegou ao Brasil, em fevereiro de 2020, as equipes que trabalham nos abrigos para venezuelanos refugiados e solicitantes de refúgio em Roraima se viram diante de uma enorme preocupação: como garantir a saúde de centenas de pessoas que convivem juntas em um mesmo espaço diante de uma doença tão contagiosa como a Covid-19?
A missão não era fácil. O coronavírus se transmite pelo ar, e, no início da pandemia, sabia-se muito pouco sobre o comportamento do patógeno. Agora, com vacinas disponíveis, há um trabalho para incentivar a imunização entre os migrantes — que também têm direito a tomar os mesmos imunizantes que os brasileiros.
Aos 71 anos e ex-fumante, Eufrosina Guaza sabia que estava entre os grupos mais vulneráveis para a Covid-19 desde o começo da pandemia. Nascida na Colômbia mas radicada na Venezuela desde os anos 1970, a idosa tomou as duas doses da vacina já no primeiro semestre de 2021 e ainda segue as medidas de precaução para evitar o contágio.
“Só quando estou em casa, eu tiro a máscara. E se vou às ruas coloco duas. E toda hora levo álcool gel. E graças a Deus, até agora, não me aconteceu nada”, diz Eufrosina.
A conscientização sobre o uso da máscara, aliás, é um quebra-cabeça a mais porque os abrigos inteiros são, afinal, a casa desses migrantes. Cada família tem acesso a uma pequena unidade, abastecida com energia solar. Mas, não raro, passam a maior parte do tempo nas áreas comuns, do lado de fora.
Assim, há momentos-chave em que um protocolo mais rigoroso é instituído: máscaras são obrigatórias para que os abrigados se sirvam nas refeições. Além disso, devem respeitar uma fila e evitar grandes aglomerações no momento da comida. A lavagem de mãos é obrigatória quando os venezuelanos retornam das ruas.
“Um ponto foi a comunicação com a comunidade. Nós trabalhamos de forma exaustiva para trazer informações corretas e confiáveis principalmente sobre as medidas preventivas”, afirma Leila Rafael da Silva, assistente de proteção da Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Mesmo com os cuidados e com a insistente conscientização sobre os riscos da Covid-19, o coronavírus entrou nos abrigos da Operação Acolhida em Roraima — especialmente nos momentos mais graves da pandemia em todo o país.
Segundo o Acnur, 14 venezuelanos abrigados no estado morreram por causa da Covid-19 até o fim de 2021. E mais de 800 chegaram a ser colocados em quarentena, isolados em áreas especiais dos abrigos, por apresentarem sintomas da doença.
Havia, ainda, a preocupação com os familiares que ficaram na Venezuela. “Principalmente por causa da deterioração dos serviços de saúde venezuelanos. Durante a pandemia, isso piorou ainda mais”, aponta Leila da Silva, do Acnur.
Como os venezuelanos muitas vezes trabalham em Boa Vista em profissões essencialmente presenciais, foi muito difícil evitar que eles contraíssem o vírus durante os momentos de maior contágio na capital roraimense.
“Era muito triste, as pessoas saíam para trabalhar e voltavam infectadas”, relata Yohana Tovar, de 40 anos. Ela, o marido e os quatro filhos que a acompanham no abrigo não pegaram Covid. “Graças a Deus, passamos todo esse tempo bem.”
“Tivemos visitas e conversas sobre prevenção, nos davam kit com álcool gel, sabão e tudo isso. E, bom, pudemos passar toda a pandemia bem, graças a Deus, e com saúde.”
O trabalho, inclusive, foi uma forma encontrada pelos voluntários e representantes da sociedade civil nos abrigos para estimular os venezuelanos a atuarem proativamente na luta contra o coronavírus.
Vanessa Epifânia, do projeto Fraternidade Sem Fronteiras, confeccionou máscaras dentro do local onde já existia uma oficina de costura. “Queríamos também ser uma resposta para esta situação em nosso abrigo, então começamos a fazer as máscaras”, conta.
“Fizemos isso para que a comunidade pudesse entender que, sim, existia um perigo iminente. Mas que a gente deveria não só seguir os protocolos, mas também cuidar da própria comunidade.”
Houve comemoração nos abrigos quando, em janeiro de 2021, a vacinação contra a Covid-19 começou em todo o país. Embora em um ritmo inicial bastante lento e com as doses restritas aos grupos prioritários, foi o começo da esperança na superação da pandemia.
“As primeiras pessoas vacinadas foram os idosos. Foi um dia de festa, para todo mundo. Teve um senhor que chorou, e a gente chorou”, relata Leila da Silva, do Acnur.
Foi necessário, então, um trabalho muito intenso para conscientizar os abrigados sobre a importância da vacinação. Não foi tarefa fácil. Informações falsas chegavam a todo momento, e eram os profissionais e voluntários que tinham de explicar por que valia a pena manter a imunização em dia.
Deu certo, ao menos em parte. De acordo com dados do Acnur do início de dezembro, 59,15% dos abrigados tinham a imunização completa contra a Covid-19. Falta muita gente, é verdade, mas o dado está acima do percentual do estado de Roraima, onde nem 40% da população havia completado o esquema de vacinação até 10 de dezembro de 2021.
Um detalhe, porém, ajudou no convencimento de muitas das famílias: ao chegar ao Brasil, a maioria dos migrantes venezuelanos deve obrigatoriamente tomar a vacina tríplice viral — que protege contra caxumba, rubéola e sarampo. E os pais também são orientados a vacinar as crianças contra as demais doenças antes de colocá-las nas escolas.
Como mãe que vacinou os filhos, Yohana Tovar elogiou esse cuidado. “Tudo tem um controle com as vacinas. Tudo tem um cuidado como deveria ser”, diz.
*Os repórteres viajaram a Boa Vista a convite do Acnur como premiação pelo especial ‘Saí para salvar minha vida’, publicado em 2019 e vencedor da categoria Acnur 70 anos do Prêmio CICV de Cobertura Humanitária em 2020