A decisão do presidente brasileiro Jair Bolsonaro de visitar Vladimir Putin, na Rússia, em meados de fevereiro, abriu um novo flanco de tensões na relação com o governo dos Estados Unidos. À BBC News Brasil, profissionais da diplomacia americana chamaram a decisão do mandatário brasileiro de "insana" e "sem sentido".
Embora Brasil e Rússia componham o bloco de emergentes Brics (junto com China, Índia e África do Sul) e mantenham relações comerciais e diplomáticas há tempos, a viagem de Bolsonaro ao país do Leste Europeu caiu mal para os americanos especialmente pelo momento em que ocorrerá.
EUA e Rússia protagonizam duro embate político internacional. De um lado, os russos estacionaram mais de cem mil soldados na fronteira com a Ucrânia e ameaçam invadir o país a qualquer momento se os americanos e seus aliados ocidentais não interromperem qualquer processo para a entrada da Ucrânia na Otan, a aliança militar do Atlântico Norte.
De outro lado, os americanos abastecem o governo ucraniano com armas e já deslocaram mais de 3 mil soldados para bases da Otan na Romênia e na Polônia. O risco é que a situação, que até agora gerou ásperas discussões na ONU e trocas de acusações de parte a parte, evolua para uma guerra na Europa.
É nesse contexto que Bolsonaro desembarcará em Moscou no dia 14 de fevereiro.
"É como assistir uma criança correndo na pista para tentar atravessar uma rodovia expressa e movimentada", afirmou à BBC News Brasil um ex-alto diplomata americano, que já trabalhou no Brasil, a respeito da visita do presidente brasileiro à Rússia.
Na semana passada, oficiais do Departamento de Estado agiram para expressar claramente o descontentamento dos EUA com os planos brasileiros. Há dez dias, consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por nota, que "o Brasil tem a responsabilidade de defender os princípios democráticos e proteger a ordem baseada em regras, e reforçar esta mensagem para a Rússia em todas as oportunidades''.
A portas fechadas, diplomatas americanos disseram aos brasileiros que a viagem de Bolsonaro à Rússia passaria ao mundo uma mensagem de que o Brasil endossa as atitudes de Putin em relação à Ucrânia e de que o governo brasileiro é indiferente a ameaças de invasão de territórios alheios por potências.
O Brasil é atualmente um aliado militar extra-Otan dos Estados Unidos, status garantido ao país ainda na gestão do republicano Donald Trump. No ano passado, já no governo do democrata Joe Biden, os americanos afirmaram endossar que o Brasil se tornasse um parceiro global da Aliança Militar do Atlântico, o que aumentaria ainda mais acesso às Forças Armadas brasileiras a armamentos e treinamentos.
"Não é possível que o Brasil ignore o significado simbólico dessa viagem. Esse não é o momento de discutir relações bilaterais com a Rússia, enquanto eles ameaçam invadir seu vizinho. Claro que os Estados Unidos não estão felizes com o plano, assim como os europeus também não estão, porque sugere uma falta de respeito em relação às regras do jogo internacional, que historicamente o Brasil costumava defender", afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador americano no Brasil Melvyn Levitsky, atualmente professor de relações internacionais da Universidade de Michigan.
O Itamaraty tem respondido aos americanos que a viagem estava pendente há mais de um ano - embora o convite de Putin tenha sido formalizado apenas em dezembro -, e que tratará estritamente de temas bilaterais.
A Rússia não está nem entre os dez maiores parceiros comerciais do Brasil, mas vende ao país fertilizantes necessários para a agricultura brasileira. Não há, no entanto, expectativa de que a visita possa resultar em algum acordo comercial formal entre os dois países.
A viagem ao leste europeu também contará com uma parada de Bolsonaro na Hungria, excluída por Biden do encontro pela democracia organizado pelos EUA em dezembro, já que Washington vê o governo conservador e direitista de Viktor Orban como distanciado dos princípios democráticos.
Orban é hoje um dos principais aliados internacionais de Bolsonaro. A entusiastas que o questionaram na frente do Palácio da Alvorada, o presidente brasileiro também elogiou as credenciais políticas de Putin: "Ele [Putin] é conservador sim. Eu vou estar mês que vem lá, atrás de melhores entendimentos, relações comerciais. O mundo todo é simpático com a gente".
Analistas internacionais afirmam que a viagem à Rússia tem importância política doméstica para Bolsonaro, que quer mostrar aos eleitores brasileiros que não está isolado no mundo, como afirmam seus críticos. "Com a saída de Trump da Casa Branca, Bolsonaro perdeu seu principal aliado e tenta com a visita a Putin um realinhamento ideológico internacional. É claro que isso vai irritar ainda mais os EUA", afirma Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da Faap.
Há pouco mais de um ano, a relação entre brasileiros e americanos sofreu um forte abalo, depois que o republicano Donald Trump, considerado o maior aliado global do atual mandatário brasileiro, perdeu as eleições e acusou de fraude eleitoral seu opositor Joe Biden, sem provas. Bolsonaro endossou tais alegações de Trump e demorou semanas para parabenizar o novo presidente dos EUA, que, em troca, se recusa a conversar diretamente com o colega brasileiro desde que chegou à Casa Branca.
De lá pra cá, o Brasil tem sido pressionado pelos americanos a mudar sua postura em relação à questão do meio ambiente, já que combater o aquecimento global é uma prioridade da gestão Biden. Por outro lado, os EUA mantiveram o apoio para que o Brasil entrasse na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, uma prioridade para o governo Bolsonaro.
Um embaixador que acompanhou as discussões com os americanos sobre a viagem à Rússia afirmou que para o Brasil não há vantagens de se alinhar nesse momento com os americanos e cancelar a viagem. "Se eles acham que somos tão importantes, porque então o Biden não fala com nosso presidente?", teria sido uma das respostas da diplomacia brasileira.
Apesar da retórica, no entanto, na segunda-feira passada (31/1), o Brasil acompanhou os Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU ao concordar que a questão Ucrânia deveria ser tratada no colegiado - contra a vontade dos russos.
No voto do país, no entanto, o embaixador brasileiro Ronaldo Costa fez questão de pontuar que o Brasil não endossa nem os exercícios militares russos nem as ameaças de sanções econômicas unilaterais dos americanos. E que manterá sua independência e defesa de saídas diplomáticas e multilaterais.
"Visitas bilaterais são normais, não implicam na violação de nenhuma regra internacional. Com o voto na ONU, o Brasil tentou deixar claro que a viagem à Rússia não deve ser tomada como a expressão de uma posição pró-Rússia. A questão está na oportunidade: os americanos estão fazendo um esforço para conter os ímpetos russos por meio de alianças, e queriam contar com o Brasil nesse bloco", avalia o embaixador brasileiro Sérgio Amaral, que já comandou a embaixada em Washington.
A preocupação dos americanos com a questão Rússia/Ucrânia tem dominado a agenda internacional do país. E não só porque ela pode detonar uma guerra na Europa, mas porque os Estados Unidos enxergam no desafio russo uma contestação à atual ordem internacional.
"Estamos vivendo um processo de demarcação de linhas e territórios de influência pelas potências, que estão reavaliando as suas posições geopolíticas. E isso vai criando novas áreas de instabilidade. Os EUA vão tentando manter sua hegemonia e as regras do jogo do pós segunda guerra, que veta invasões e tomadas de território, enquanto a Rússia se vê prejudicada pela expansão da Otan. Dos 30 membros da aliança militar hoje, 14 são ex-repúblicas ou países de influência russa", nota Amaral. Nesse xadrez global, estaria também a tensão entre China e Taiwan.
O grau de importância e de tensão do assunto transpareceu em um episódio entre os governos brasileiro e americano. Em meados de janeiro, depois de uma conversa com o chanceler Carlos França, o secretário de Estado americano Antony Blinken divulgou uma nota em que dizia que os dois países tinham "prioridades compartilhadas, incluindo a necessidade de uma resposta forte e unida contra novas agressões russas à Ucrânia". O Itamaraty considerou que os americanos cruzaram uma linha com a afirmação, que não refletia o posicionamento brasileiro. O órgão veio a público com um "esclarecimento", no qual defendia solução diplomática e pacífica e mostrava não se alinhar a nenhum dos lados.
Para Melvyn Levitsky, a viagem de Bolsonaro à Rússia "lançará mais uma sombra sobre a relação Brasil-EUA". "Não acredito que haverá uma resposta imediata (dos americanos), mas a relação vai piorar, certamente, e Bolsonaro terá que responder - se (Brasil) se posicionou como um aliado militar extra-OTAN deveria se posicionar diante de Putin", diz o ex-embaixador no Brasil. Bolsonaro já afirmou em entrevista à rede Record que não mencionará o assunto Ucrânia na visita a Putin.
Na última quinta (3), o secretário assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental Brian Nichols afirmou em sessão no Congresso dos EUA que, "até onde sei", não há planos para revogar o status de aliado militar extra-Otan do Brasil.
Mas diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, a depender do que acontecer na viagem e caso Bolsonaro se reeleja em outubro, essa é uma possibilidade.
Segundo os americanos, a visita recente do presidente argentino Alberto Fernandéz a Putin também provocou descontentamento em Washington. Os diplomatas dos EUA afirmam que o convite russo para os mandatários de Brasil e Argentina são uma forma de mostrar aos americanos que ele também pode exercer poder na zona de influência americana por excelência e que não está tão isolado como o Ocidente gostaria.
Como Fernandez e Biden têm boa relação, os argentinos estariam agora, segundo fontes americanas, se esforçando para reverter o mal-estar. Isso não seria verdade no caso brasileiro. Para os americanos, pode custar caro.
"Bolsonaro pode até achar agora que ele não tem muitos amigos no governo americano ou na Europa Ocidental. Mas se seguir em frente com esse tipo de atitude, aí sim ele vai ver o que é ser barrado no baile", diz um ex-alto diplomata dos EUA.