“Acho que as águas iniciam os pássaros Acho que as águas iniciam as árvores e os peixes E acho que as águas iniciam os homens. Nos iniciam. E nos alimentam e nos dessedentam” (Manoel de Barros)
Ao mirar o Rio da Prata neste março de 2022, o empresário Eduardo Folley Coelho reencontra água tão cristalina como a que via há 30 anos. O cenário contrasta com a lama que tingiu o rio em novembro de 2018 e provocou a reação da sociedade em Bonito, a cidade acostumada a ser notícia por seus aquários a céu aberto e não pela destruição do meio ambiente.
Dádiva da natureza, o rio de 90,7 quilômetros de extensão segue seu curso com boas-novas, deixando para trás o prognóstico de morte em 10 anos. Desta feita, continua cumprindo o destino das águas que iniciam os peixes, os pássaros, os homens e hidratam a economia da rota turística.
“O Prata melhorou demais em função daquela crise. Houve mobilização da sociedade e o governo tomou uma série de medidas. Não só o governo, produtores rurais, organizações não governamentais, o setor de Turismo. A visibilidade está em torno de 14 metros, está excepcional. Na transparência, o Prata voltou a ser aquele que era há 30 anos”, afirma o empresário.
O rio, que nasce na divisa entre Jardim e Bonito e deságua no Miranda, colhe hoje os resultados de uma série de iniciativas: medidas de conservação do solo nas fazendas, caixa de retenção da água pluvial nas estradas para reduzir a força da enxurrada, lei de proteção aos banhados (os brejos que filtram os sedimentos que chegam ao Prata) e, até mesmo, uma questão do clima, há alguns anos chove menos do que o normal na região.
Presidente do Instituto das Águas da Serra da Bodoquena, Eduardo Coelho também é diretor do Grupo Rio da Prata, que reúne os atrativos Lagoa Misteriosa, Recanto Ecológico Rio da Prata e Estância Mimosa Ecoturismo. Por ano, são 55 mil visitantes aos passeios. E, mesmo quem roda o mundo, se surpreende com a beleza da região.
“Um recurso desse é fantástico a nível de mundo. Qualquer pessoa que vai a Jardim, Bonito, Bodoquena, fica encantada”, afirma Eduardo. Natural de Campo Grande, ele conta que conheceu o Rio da Prata na adolescência, quando ia acampar com os amigos. Depois, sua família comprou um pedaço da fazenda para atividade pecuária e lazer da família.
Ele conta que o pai já enxergava o potencial da região para o turismo. Pioneiro do setor, Eduardo foi uma das vozes que se ergueu em defesa do Rio da Prata na crise de 2018.
Uma das iniciativas é o Instituto Amigos do Rio da Prata, que divulga nas redes sociais fotografias diárias para retratar a situação do curso de água. A intenção é que esse memorial do rio siga pelos anos, com a esperança de que a lama de 2018 seja apenas o registro de um triste e isolado episódio.
Por hora, já é tempo de lançar luzes sobre o novo desafio: aumentar o volume de água e o estoque de peixes. Já não se encontra cardumes de pacu, pintado, cachara, dourado.
“A qualidade da água a gente está conseguindo, mas a quantidade vai precisar de um grande esforço para melhorar. Temos que fazer um trabalho muito forte de proteção das nascentes”, afirma o empresário.
Lei dos banhados - A proteção aos brejos, também chamado por banhados, ganhou reforço de peso com a Lei 5.782, publicada em 16 de dezembro de 2021 pelo governo do Estado. Muito festejada, a legislação instituiu como áreas prioritárias banhados nas nascentes dos rios da Prata e Formoso. A lei abrange 13.659 hectares nos municípios de Bonito e Jardim.
“Quando cheguei aqui, o Rio da Prata estava correndo risco. Muito por conta das questões dos banhados, não existia proteção plena. Foi um avanço quando o próprio Estado reconheceu que precisa de proteção. Hoje, o Rio da Prata está bem calçado”, afirma o promotor Alexandre Estuqui Junior, que atua há quatro anos em Bonito.
Em dezembro de 2018, quando o Rio da Prata virou lama, o promotor trazia dado preocupante: se nada fosse feito, o rio morreria em dez anos.
“Naquela época, era muito fácil o turvamento. Hoje, o Rio da Prata está bem por conta da lei que exige conservação de água e solo, a questão da lei nova dos banhados e o Imasul [Instituto de Meio Ambiente de MS] não ter liberado mais drenos na região”, destaca Estuqui.
Na fisiologia dos rios, os brejos são os rins, filtrando as impurezas e garantindo a transparência. Pesquisa da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) mostrou que o brejão do Rio da Prata, como é chamado o berçário do curso de água, teve redução de dois mil hectares em 34 anos. Entre 1984 e 2018, a área recuou de sete mil para cinco mil hectares.
Há quatro anos, chamavam atenção os 46 quilômetros de drenos para secar a área de banhado. A medida era para deixar a área propícia para a agropecuária. Na época da lama, o episódio do turvamento das águas do Rio da Prata foi devido ao excesso de chuva e a troca de pastagem por lavoura em fazendas. A falta de curva de nível em duas fazendas levou lama ao curso de água.
Retrato de três décadas - Ocupando uma área de 1.393 km² (quilômetros quadrados), a bacia hidrográfica do Rio da Prata foi protagonista da pesquisa “Predições do uso e ocupação do solo e seus impactos na erosão do solo no ecótono Cerrado/Mata Atlântica: estudo de caso da bacia hidrográfica do Rio da Prata”.
O levantamento de pesquisador da UFMS apontou que atividades agropastoris foram as que mais influenciaram na mudança do uso e ocupação do solo. As áreas mais afetadas eram as nascentes, vegetação ciliar dos afluentes e principalmente, o banhado.
A pecuária era mais presente do que as lavouras, mas o perfil começou a mudar a partir de 2007. A expansão da atividade agrícola se concentrou nas nascentes e banhados, respectivamente as áreas mais importantes da bacia do Rio da Prata. A pesquisa analisou as mudanças no uso e ocupação do solo nas últimas três décadas.
Risco do desmatamento - De acordo com a Fundação Neotrópica do Brasil, dentre as principais causas de turvamento estão a presença de drenos em áreas úmidas, o desmatamento e avanço das áreas de agricultura e a má conservação de solo.
A Lei 1871/1998 prevê uma faixa de proteção especial de 150 metros de largura para cada lado da margem do Rio Prata e seus afluentes, proibindo as atividades de agricultura, extração de madeira, indústria de qualquer porte e extração mineral.
"Entretanto, após levantamentos por meio de imagens de satélite, o Nugeo-Bonito, coordenado pela Fundação Neotrópica do Brasil, constatou que existe cerca de 50 hectares de conflitos de uso na faixa de proteção especial na bacia do Rio da Prata".
Já a conservação de solo está prevista apenas para as novas áreas de produção localizadas nas bacias cênicas. Para as áreas antigas, não houve nenhuma modificação ou exigência legal (medidas mitigadoras).
"Vale destacar que do ponto de vista de aumento de proteção foram criados alguns mecanismos, mas que a efetiva proteção em si ainda depende de cessar o desmatamento no planalto da Bodoquena, fiscalização e cumprimento da legislação existente. E deve se monitorar períodos de chuvas mais concentradas e em maior volume, como ocorreram há alguns anos atrás para verificar o efetivo resultado das ações de conservação".
“Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”. (João Guimarães Rosa)