O Supremo Tribunal Federal (STF) tem na pauta de julgamentos desta quarta-feira (24) um caso que trata da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. A análise já começou, mas foi interrompida em 2015. De lá para cá, a Corte não voltou a julgar o tema.
Em discussão está a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006. A norma estabelece que é crime adquirir, guardar ou transportar drogas para consumo pessoal.
Especialistas ouvidos pela CNN disseram que a Corte tem a possibilidade de aliviar os efeitos negativos da chamada “guerra às drogas”, ao definir a descriminalização do porte para consumo. A medida, avaliam, já é adotada em outros países e pode contribuir para aprimorar o combate à criminalidade organizada e a tratar usuários pelo viés da saúde pública.
O caso tem repercussão geral reconhecida, ou seja, o entendimento firmado pelo STF neste julgamento deverá balizar casos similares em todo o país. Apesar do potencial do caso, há o entendimento de ministros de que definições mais específicas do tema deveriam ficar com o Congresso.
O alcance e os efeitos de uma decisão da Corte vão depender da posição dos ministros sobre a especificação a cada tipo de droga, caso haja uma definição pela descriminalização. O resultado pode sequer vir agora, pois algum ministro pode pedir vista (mais tempo para análise) e adiar o desfecho.
Iniciado há quase oito anos, o julgamento já tem três votos para não mais considerar crime o porte de maconha para consumo próprio. Votaram neste sentido os ministros Gilmar Mendes –que entendeu que deveria valer para todas as drogas–, Roberto Barroso e Edson Fachin, que restringiram seus posicionamentos ao uso da maconha.
Ao votar pela descriminalização, Gilmar propôs que não haja mais consequências penais a quem usar droga. O ministro, no entanto, defendeu a manutenção de sanções administrativas, com exceção da pena de prestação de serviços à comunidade.
Outra possível consequência de uma definição do Supremo para descriminalizar o consumo é a fixação de parâmetros objetivos para diferenciar usuário de traficante –algo que a legislação atual não faz.
Até o momento, só Barroso avançou nessa direção. Ele propôs que seja adotado como referência para diferenciação o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis mudas. Esses critérios valeriam até que o Congresso regulamentasse o assunto.
Fachin também foi no sentido de delegar a outros poderes a função de definir algum parâmetro. Ele propôs que o STF declarasse como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e que órgãos do Poder Executivo emitissem parâmetros provisórios de quantidade para a diferenciação.
O julgamento foi suspenso em setembro de 2015 por um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Teori Zavascki, morto em acidente aéreo em 2017. Substituto do magistrado, Alexandre de Moraes será o próximo a votar quando o processo foi retomado.
Os ministros analisam um recurso apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de Francisco Benedito de Souza. Em 2010, ele foi condenado à prestação de dois meses de serviços comunitários após ser flagrado dentro de sua cela no Centro de Detenção Provisória de Diadema (SP) com três gramas de maconha.
O advogado criminalista André Kehdi, sócio do Kehdi Vieira Advogados e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), considera o julgamento como representativo de uma das questões criminais mais importantes da atualidade no país.
“O STF tem a possibilidade de, com o julgamento, tentar mitigar um pouco os danos da legislação de guerra às drogas, que historicamente foi dirigida contra grupos discriminados”, disse.
Segundo o especialista, o atual tratamento legal do tema teve como uma das consequências o aumento exponencial da população carcerária. “O próprio STF já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário”, afirmou. “Se for coerente, vai avançar no julgamento, na linha do voto do Gilmar Mendes, que é mais abrangente, para começar a mudar o panorama no país”.
Kehdi também avalia que a norma atual é genérica, e deixa que juízes interpretem caso a caso as circunstâncias do porte de droga –se para consumo pessoal ou para tráfico. A situação, segundo o advogado, favorece discriminações de teor racista.
“Existem pesquisas que demonstram que, quando a coisa é aberta e genérica, fica na mão do juiz decidir caso a caso. O que se vê é um critério claramente discriminatório e racista nas decisões”, declarou.
O advogado Ricardo Prado Pires de Campos, mestre em Direito Processual Penal e promotor de Justiça aposentado, avalia que ainda é imprevisível especular sobre qual será o resultado do julgamento pelo Supremo, apesar de o placar parcial apontar uma tendência.
Ele entende que uma definição da Corte sobre o tema servirá para reabrir o debate. O desenvolvimento do assunto, a seu ver, fica refém da polarização da sociedade, que restringe a discussão.
“A política de repressão às drogas se transformou no ponto nevrálgico da política criminal nos últimos anos, e com resultado catastrófico”, afirmou. O especialista disse que a prisão não é instrumento suficiente para fazer frente à disseminação das drogas, por se tratar de “crime econômico altamente rentável”.
“Enquanto for rentável, haverá pessoas dispostas a correrem o risco (isso é inerente ao capitalismo)”, declarou. “No sistema atual, os traficantes e outros beneficiários ficam com os lucros; o Estado fica com o prejuízo (construção e manutenção de presídios, dentre muitos outros gastos)”.
O advogado constitucionalista Henderson Fürst também vê uma eventual descriminalização tendo efeito no combate ao alto índice de encarceramento e na contestação da “guerra às drogas”, além de possibilitar que “efetivamente o consumo de drogas seja tratado como uma questão de saúde pública, e não de segurança pública”.
Ele declarou à CNN encarar de forma positiva a possibilidade de o STF estabelecer critérios, ainda que provisórios, para diferenciar quem porta droga para consumo próprio de quem tem objetivo de traficar.
“Seria muito bem-vindo tais critérios, seja para pacificar o entendimento, seja para dar segurança jurídica e proteger grupos minoritários que sofrem com a discricionariedade da autoridade policial”, afirmou.
Ele, no entanto, disse não ver o julgamento definido para a posição, prevendo a possibilidade de pedidos de vista (que suspendem a análise) e de votos divergentes de ao menos três ministros: Alexandre de Moraes, Nunes Marques e André Mendonça.
“Vale recordar a trajetória do ministro Alexandre de Moraes como ministro da Justiça e secretário de Segurança Pública de São Paulo, com políticas públicas no entendimento da constitucionalidade do dispositivo; e também os Ministros Kassio Nunes [Marque] e André Mendonça, que também possuem histórico alinhado a tal interpretação”, afirmou.
O especialista disse que discorda dos posicionamentos de Fachin e Barroso, que propuseram a descriminalização apenas da maconha.
“Os países que descriminalizam o porte para consumo individual de drogas e mudam a abordagem da segurança pública para saúde pública, registram queda nos índices de consumo das drogas”, disse. “Se isso ocorrer apenas com a maconha, o consumo de outras drogas seguirá alto e sem a adequada abordagem”.