Com potencial de roteiro cinematográfico, um homem conhecido como Salvador Pacheco marcou a história de Porto Murtinho como o falso juiz que convenceu autoridades da cidade, despachou processos, conseguiu levar armas, fugir da polícia e nunca cumprir a pena por toda a enganação. Datada de 1958, a narrativa parece até mentira de tão absurda, mas é toda documentada pelo TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).
Narrada pelo processo de “usurpação de função pública”, a história começou no dia 20 de outubro de 1958 com Salvador chegando de avião na cidade. Naquela data, sem ser conhecido por ninguém, o homem foi até o juizado e se apresentou como o novo juiz substituto, garantindo que havia sido nomeado pelo governador do então Mato Grosso, João Ponce de Arruda.
Não tendo precisado apresentar nenhuma credencial ou documento que comprovasse a nomeação, Pacheco pediu à promotoria que fizesse convites para autoridades locais e pessoas importantes para a sua posse. Cheio de si, marcou a solenidade já para o dia seguinte.
Com tudo organizado, Salvador começou a receber os parabéns pelo novo cargo às 15h, no Clube dos Caiçaras. Diz o processo que entre os convidados estavam o prefeito da cidade, vigário da paróquia, delegado de polícia, promotor de Justiça, vereadores, um fiscal do Banco do Brasil, comerciante, farmacêutico, cirurgião-dentista e até o cônsul do Paraguai.
Na posse, o suposto juiz agradeceu pela presença de todos e ainda recebeu discursos de saudações, incluindo do prefeito da cidade. Indo mais além, Pacheco fez questão de mostrar que queria exercer o cargo e logo convocou um júri especial e sorteio de jurados para o dia seguinte.
O caso tratado por ele era um homicídio em que os acusados já estavam presos. Em sua decisão, o falso juiz escolheu recomendar que a situação fosse para o Tribunal do Júri e, por isso, garantiu o sorteio para escolher os jurados.
Além disso, Salvador ainda passou tempo com os escrivães da cidade e pediu ajuda para despachar alguns processos alegando que não tinha a prática da profissão por ter se formado há pouco.
Decidido que seu tempo em Porto Murtinho já havia sido suficiente, no dia 30 de junho foi até o comando da 2ª Companhia de Fronteira e pediu uma viatura para que seguisse até Jardim. Mas, antes de partir, convenceu o escrivão do 1º ofício a entregar dois revólveres calibre 38 dizendo que eram necessários devido à viagem ser pela noite.
A justificativa usada para a viagem até Jardim foi de que havia sido chamado em caráter de urgência pelo governador e que precisaria sir até Cuiabá. Por isso, ainda levou 20 mil cruzeiros de um funcionário estadual e de um advogado, jurando que devolveria em seu retorno.
Sem problemas, o homem conseguiu chegar ao primeiro destino e, lá, conquistou outra viatura para seguir até Aquidauana. Dali, ele viria para Campo Grande, mas finalmente foi impedido no meio do caminho.
Através de um telegrama, o juiz Cesariano Delfino César avisou a promotoria de Porto Murtinho que Salvador não era juiz, mas sim um “audacioso vigarista, cujas atividades criminosas deveriam ser reparadas energicamente”.
Preso em Nioaque, Pacheco foi escoltado por policiais até o trem e seria entregue em Campo Grande. O problema é que, de acordo com as informações do processo, o criminoso conseguiu “distrair a atenção dos policiais” e fugiu do trem em uma das estações intermediárias.
A partir daí, o processo contra Pacheco foi instaurado, mas o homem nunca mais foi encontrado. Piorando a história, como se tudo já não tivesse sido suficiente, ele ainda resolveu tirar sarro da Justiça.
Ao ficar sabendo do inquérito, Salvador enviou dois telegramas originários de Bauru, em São Paulo, para Porto Murtinho. Em um dos recados, ele chamou a Justiça de desmoralizada e informou que seria impossível sua presença no julgamento, “fica outra oportunidade. Abraços. Dr. Salvador Pacheco”.
Sem muito o que fazer, o defensor do falso juiz, Raulino José Macedo, reforçou a falha do sistema judiciário da época e pediu pela absolvição. “O que houve foi apenas um cochilo das autoridades locais em aceitarem um indivíduo chegar na comarca dizendo haver sido nomeado juiz de direito substituto pelo excelentíssimo Dr. governador do Estado e, sem exibir nenhum credencial assumiu o dito cargo, passando a funcionar por um período de nove dias”, diz o texto.
Para finalizar, Macedo defendeu que “a absolvição do acusado Salvador Pacheco põe-se por uma decisão justa a fim de que sirva de exemplo às mais autoridades do nosso Estado, a fim de evitarem qualquer charlatão assumir um dos mais altos cargos, sem o revestimento das formalidades legais”.
Demonstrando a revolta dos enganados, em suas alegações finais, o promotor Cesar Froes chegou a citar até que a forma de punição da antiga Roma se encaixaria com o falso juiz.
Não fosse o sagrado regime do nosso querido e grande Brasil - celeiro de hospitalidade, benevolência e lhanura - e, ainda, pelas garantidas conferidas mesmo aos bárbaros criminosos, pela nossa carta magna e pelos estatutos penais que regem a matéria em causa, rigorosamente respeitados e cumpridos pela soberania da Justiça, o acusado Salvador Pacheco deveria ter um julgamento como fazia Nero, na velha Roma, atirando os seus desafetos na arena, a fim de serem estraçalhados e devorados por famintos leões, disse o promotor.
Condenado a dois anos e oito meses de reclusão, Pacheco nunca teve a sentença executada por não ter sido encontrado. Em 1974, o processo foi arquivado, deixando o caso apenas como uma história.
No processo do TJMS, não há informações sobre quem foi Salvador Pacheco e detalhes que contextualizam todo o cenário. Entretanto, de acordo com a revista eletrônica Consultor Jurídico, há indícios de que o homem realmente tenha sido um advogado nascido no Rio de Janeiro.
Ainda conforme a revista, antes de ter se envolvido no episódio de Porto Murtinho, o homem havia sido preso no Paraguai por contrabando de armas.