Com um desembolso de quase R$ 2 bilhões, Itaipu firmou mais de 120 convênios socioambientais desde a posse do atual diretor-geral no Brasil da binacional, Enio Verri, em março de 2023, até julho do ano passado, data da divulgação mais recente pela empresa.
A expansão de gastos -bancada pela conta de luz dos moradores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste- é considerada exagerada e sem critérios por críticos da atual gestão.
Na página da Itaipu que lista as parcerias, o conteúdo detalhado não é divulgado e faltam informações sobre o segundo semestre de 2024. A Folha teve acesso a uma parte dos convênios firmados, e especialistas consultados pela reportagem identificaram lacunas no material.
Itaipu afirma que monitora os convênios para assegurar a correta aplicação dos recursos (leia mais abaixo).
O convênio "Bio Favela - Cufa e Itaipu pela Vida na Favela", por exemplo, firmado com o Instituto Athus, parceiro da Central Única das Favelas no Paraná, tem proposta meritória.
Busca promover atividades educacionais, culturais e esportivas para crianças e jovens, além de apoiar o empreendedorismo e a geração de empregos.
Nesse convênio, foram previstos R$ 24,5 milhões, de agosto de 2024 a agosto de 2027, para atendimento de cem favelas. A prestação de contas da compra de material esportivo, porém, chama a atenção.
O contrato prevê oficinas de basquete 3X3, futsal e skate. Originalmente, alcançaria 20 comunidades, mas a Athus informou que a atuação foi ampliada. Chega a 40 favelas, duas vezes por semana, em períodos de duas horas, para atender ao menos 600 crianças e jovens, de dez a 15 anos, por modalidade.
Em outubro passado, a Athus formalizou a aquisição de 2.100 bolas por R$ 300 a unidade. Seriam 1.050 de basquete e 1.050 de futsal. Essa nota, porém, foi anulada, e a nova trouxe o valor de R$ 200 por bola, com o número subindo para 3.150 unidades, ou 1.575 de cada tipo. A proporção é de quase três bolas para cada jovem atendido.
Ambas as notas informam que as bolas são da marca Penalty, mas não especificam o modelo ou qualquer característica, imprecisão considerada estranha por advogados especializados em projetos socioambientais ouvidos pela reportagem.
Eles afirmam que detalhar características dos produtos é procedimento básico na avaliação adequada do gasto. Alguns locais até exigem que a tomada de preço e a compra de bolas sejam baseadas em características como peso, tamanho e tipo de material e proíbem a citação de marcas para não parecer compra dirigida.
À reportagem a assessoria de imprensa da Athus disse que a primeira nota fiscal foi retificada porque não trazia os valores finais corretos, obtidos após negociação que viabilizou um desconto melhor para a compra de produtos superiores, que duram mais: a bola de basquete Penalty Crossover Tam 7 e a de futsal Penalty Max 1000 Termotec XXIV.
Respectivamente, elas ficam na casa de R$ 500 e R$ 300 a unidade em lojas de produtos esportivos.
No entanto, as fotos que aparecem na prestação de contas retratam bolas de basquete Playoff IX e Penalty RX -que custam pouco mais de R$ 100.
Postagens em redes sociais de novembro, que registraram a chegada das bolas a algumas comunidades, mostram crianças com esses modelos mais baratos.
Segundo a Athus, as bolas Playoff e RX que aparecem nas fotos da prestação de contas foram brindes. A entidade enviou à Folha fotos mostrando crianças em atividades com as bolas mais caras, mas com o compromisso de o jornal não publicá-las para não expor menores de idade.
Gestores de projetos esportivos, porém, estranharam tanto o número de bolas compradas quanto o tipo e o desconto.
O orçamento do convênio prevê a compra de 2.100 bolas por ano --6.300 ao todo. Profissionais da área esportiva dizem que, para atendimento anual de 600 beneficiários em 40 locais, duas vezes por semana, bastam 400 por modalidade. Não é preciso ter mais de uma bola por pessoa atendida.
Também comentaram que cada um faz projeto social com o material que consegue, mas ter tantas Crossover 7 parece exagerado. O modelo é de alta performance para atletas adultos. Por ser maior e mais pesada, pode até machucar uma criança miúda, e a mão de muitos jovens não tem tamanho apropriado para segurar uma bola dessas.
A Max 1000 está na elite do futsal. Certificada pela Fifa, é projetada para literalmente voar. Dar uma bola dessas para um jovem amador equivale a tirá-lo de uma brincadeira de kart e pedir para pilotar uma Ferrari, comparam.
As bolas apontadas como mais apropriadas para as oficinas recreativas infantojuvenis são aquelas mais simples e mais baratas, que a Athus informou serem brindes.
Os descontos obtidos também causaram espanto a quem atua no ramo. Um gestor ficou tão surpreso que usou a expressão "estourou no norte" para definir a compra: sucesso total. Foi consenso entre os especialistas consultados que o fornecedor precisa ter uma margem fora do comum para fazer o preço de R$ 200, especialmente no caso da Crossover 7.
A marca Penalty é oferecida por redes nacionais, com quem se pode barganhar em compras de grandes volumes. Porém, o fornecedor no caso foi a Cocatto Sportes - Uniformes Esportivos, de Curitiba, que apesar do nome também se prontifica a fornecer outros artigos esportivos, como tênis e bolas, se o cliente quiser.
Levantamento realizado pela Folha identificou que a empresa tem registro de ME (microempresa). Para permanecer nessa modalidade, que prevê isenções tributárias, deve ter faturamento anual de até R$ 380 mil. A venda das bolas foi mais que o dobro desse valor, R$ 630 mil.
Outro convênio que chama a atenção é o "Programa de Capacitação AMP 4.0", que, como diz o nome, foi firmado com a Associação de Municípios do Paraná. Tem orçamento de R$ 48 milhões para, de dezembro de 2023 a dezembro de 2025, capacitar gestores em políticas públicas. O escopo é diverso: tem treinamento para atuar com autismo, alfabetização, lazer e esportes e licitações.
A AMP, no entanto, não tem estrutura para oferecer o foco do convênio, a capacitação em si. Terceiriza a capacitação para uma entidade de ensino.
IRREGULARIDADE
Esse tipo de atuação, segundo advogados da área, pode levantar questionamentos. O TCU (Tribunal de Contas da União), por exemplo, entende que transferir integralmente o objeto de um convênio é um procedimento irregular.
Itaipu, no entanto, por ser estatal binacional entre Brasil e Paraguai, não está sob a alçada do TCU ou de nenhum órgão de controle externo. O único ente que pode pedir explicações é o Congresso --de cada lado da fronteira, pelo país que lhe cabe.
Quem comanda Itaipu também tem boa dose de autonomia para gastar. Basta a assinatura do diretor-geral para aprovar um convênio de até US$ 200 mil. Despesa de até US$ 1 milhão exige aval conjunto, incluindo o diretor-geral do outro país, que não costuma fazer questionamentos. Para até US$ 5 milhões, é preciso crivo da diretoria. O conselho de administração pode ser acionado a qualquer momento, mas se ocupa dos valores maiores.
O dinheiro canalizado para financiar esses e outros projetos vem da tarifa de energia da usina, que é obrigatoriamente cobrada de todos os brasileiros que moram nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste --tarifa essa que tem sido mantida elevada justamente para gerar esse extra bilionário voltado a obras e projetos socioambientais.
Apenas no ano passado, Itaipu no Brasil teve US$ 450 milhões (o equivalente a R$ 2,5 bilhões) para financiar projetos, procedimento que o governo qualifica como cumprimento da "missão socioambiental de Itaipu".
OUTRO LADO
A Itaipu enviou posicionamento à Folha destacando que faz monitoramento contínuo dos convênios para assegurar a correta aplicação dos recursos.
No que se refere ao Bio Favela, disse que a conveniada deve apresentar pelo menos três orçamentos, considerando disponibilidade, prazos de entrega, frete e qualidade, priorizando a melhor relação entre custo e benefício. Afirmou que, nesse processo, identificou valores acima do mercado e solicitou ajustes.
"A entidade executora refez as cotações, apresentou justificativas e benefícios adicionais na negociação", diz o texto.
Segundo Itaipu, a Athus faz prestação de contas e apresenta evidências e comprovações das atividades, por meio de relatórios financeiros e de atividades realizadas. O relatório de atividades, afirmou a assessoria da usina, demonstrou as crianças atendidas utilizando materiais compatíveis com os valores apresentados nas notas.
Procurada, a assessoria de imprensa da Cufa disse que a Rede Cufa faz parcerias com ONGs em vários locais, mas não tem conhecimento do projeto técnico, da administração dos recursos ou da tomada de decisões, se limitando apenas a mobilizar os jovens para receber os benefícios.
"A prestação de contas cabe ao Instituto Athus, que é o responsável pelo convênio."
O Instituto Athus deu várias informações complementares para a reportagem, que estão no texto, e também reforçou seu empenho em conseguir os melhores equipamentos por preço mais competitivo.
"Nós entendemos que esses jovens em geral não têm acesso a material de qualidade. Então, quando temos a oportunidade, fazemos", afirmou o texto.
"As bolas chegam em lotes, e os primeiros que vieram foram os dos quais prestamos contas, mas todas as aquisições estarão em todas as prestações, que irão acontecer ao longo da execução do projeto."
A repórter também procurou a Cocatto Sportes. Apresentou-se com jornalista da Folha e explicou a razão do telefonema. A pessoa que atendeu disse que a ligação estava ruim, tinha cliente para atender e desligou. O telefone não foi atendido nas tentativas seguintes.
Sobre a parceria com a AMP, a assessoria de Itaipu afirmou que, por norma interna, a estatal não firma convênio com instituições com fins lucrativos e escolheu a AMP por sua capilaridade.
"Trata-se de sociedade civil de âmbito estadual e sem fins lucrativos, representativa dos 399 municípios do estado", descreve o texto, complementando que a AMP tem conhecimento técnico da realidade local e capacidade de gestão do programa, que recebeu 35 mil inscrições e conta com 18.714 alunos ativos.
"A AMP foi responsável por selecionar, por meio de um processo seletivo público com critérios técnicos, instituições de ensino qualificadas para ministrar os cursos, assegurando a qualidade e a eficiência da capacitação dos servidores públicos municipais", explica.
"Todos os processos foram conduzidos com rigor técnico e alinhados às melhores práticas de gestão pública, respeitando os princípios da economicidade, da eficiência e da transparência na aplicação dos recursos."
A assessoria de imprensa da AMP respondeu à reportagem que enviaria posicionamento, o qual não havia chegado até a publicação deste texto.
(Informações da Folhapress)
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