Milhares de mulheres de todo o mundo estão reunidas em Nova York para avaliar e revisar o maior tratado multilateral sobre igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas, a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim.
A 69ª Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW69) ocorre na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) e vai até o próximo dia 22.
Para a coordenadora da Rede de Desenvolvimento Humano, Maria Aparecida Schumaher, a Schuma, diante de uma política global que acentua ainda mais a divisão entre os hemisférios, uma das preocupações em debate é com o andamento das conquistas feministas:
“A gente está diante de uma realidade bastante difícil, em que a gente retrocedeu no mundo. A onda conservadora se ampliou, infelizmente. Eu acho que a delegação brasileira está bastante preparada, tem muita gente da sociedade civil para fazer pressão, mas não depende só da posição do Brasil, depende da posição de outros países que, infelizmente, têm uma posição bastante conservadora e até se fala muito, em muitos momentos, de retrocesso.”
Para a historiadora e pesquisadora de relações de gênero e raciais, Wania Santana, a eleição de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos e o crescimento da extrema-direita na Europa são fatos que efetivamente devem transparecer neste fórum, mas o Sul Global deve reagir .
“Eu acho que a gente pode ter reações inesperadas de países asiáticos, sinceramente, até mesmo da China. E eu acho que talvez a gente possa se surpreender com uma participação mais ativa de alguns países latino-americanos e também de alguns países africanos. A gente tem que ir preparado para a luta”, reforça.
As reuniões da CSW ocorrem logo após a divulgação de um relatório da ONU Mulheres, com um balanço da Plataforma de Ações de Pequim, dos últimos cinco anos, que revelou um retrocesso nos direitos femininos em um quarto dos 159 países que entregaram seus relatórios nacionais .
O relatório brasileiro não foi diferente e demonstrou avanços consolidados como as leis Maria da Penha, a do Feminicídio e da Igualdade Salarial, políticas públicas que distribuem a responsabilização do cuidado, enfrentam a fome e consolidam muitos outros direitos de mulheres e meninas, mas também com muitos entraves.
Para Schuma, os avanços e retrocessos demandam um esforço muito maior de mulheres para que uma ideia se consolide.
“Não se trata só da implementação das políticas. Na verdade, também é necessário uma mudança de mentalidade, na compreensão e nos respeitos aos seres humanos. Todos eles independente da sua raça, etnia, sexo, orientação, território ou localidade onde vivem. Então, o que acaba acontecendo é que quando a gente dá cinco passos para frente, também anda quatro para trás”.
Na avaliação da Ana Carolina Querino, representante da ONU Mulheres no Brasil, por se relacionarem diretamente com as causas raízes das desigualdades no país, os avanços nas leis e políticas públicas tendem a se consolidar após profundas discussões sobre normas sociais, por isso a importância do Brasil também avançar na qualidade da produção de dados científicos e estatísticos .
“Só é possível trazer elementos, para a discussão na agenda pública, baseados em evidências e dados a partir das interseccionalidades [análise de múltiplos fatores], para poder falar da situação das mulheres na sua diversidade, de mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres quilombolas, com no último Censo”, destaca.
Mesmo com uma jornada muito mais lenta do que o esperado por mulheres e meninas de todo o mundo, a efetividade da Plataforma de Ações de Pequim é uma conquista que deve ser comemorada, afirma Wania Santana .
“É um documento extenso e amplo e que contempla muitos temas e permanece atual, mesmo que precise de aprimoramento em questões que avançamos ao longo do tempo, como debates de enfrentamento ao racismo, direitos da população LGBT+, só pra citar alguns.”
A própria construção do tratado internacional, há 30 anos – e dessa agenda que continua a orientar nações de todo o mundo –, retoma uma história de mobilização e participação social feminina.
“Havia um momento político de grande espírito de organização. E é isso que explica, por exemplo, ter sido capaz, aqui no caso brasileiro, de mobilizar mulheres de todos os estados do país na criação dos fóruns estaduais de mulheres, que se reuniram na Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) Rumo a Pequim. Então, nós fizemos esse trabalho de organização por dois anos intensos”, relembra Wania.
A pesquisadora foi uma das ativistas que atuou em duas frentes durante a 4ª Conferência Mundial da Mulher, ocorrida na cidade chinesa de Pequim, em 1995. Na delegação oficial levada pelo governo brasileiro e também no fórum social, que teve naquele ano a atuação de mais de 300 brasileiras representando a AMB.
“Foi uma conferência em um momento onde o feminismo, a mobilização, a organização das mulheres estava ressurgindo. Na verdade, estava começando, porque vários países haviam passado por períodos ditatoriais, períodos com mais dificuldade de expressão. Então, era um momento bastante propício para a participação social”, recorda Schuma.
No Brasil, a familiaridade com conferências das Nações Unidas ganhou força logo após a Eco 92, no Rio de Janeiro.
“Nós fizemos, em julho de 1995, um grande encontro aqui no Rio de Janeiro com a participação de 900 delegadas do Brasil inteiro, onde nós tiramos a Carta das Brasileiras Para a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher. Nós a encaminhamos ao governo brasileiro, através das instâncias que estavam naquele momento envolvidas com a conferência e, por sorte, a gente tinha uma delegação oficial bastante progressista”, relembra Schuma.
A atuação da delegação brasileira também ganhou força com o reforço do movimento feminista de outros países da América Latina e muitos dos debates levados pelo grande bloco foram incluídos na Declaração de Pequim, como os direitos sexuais e reprodutivos no que diz respeito à punição de mulheres.
“Esse foi o grande embate, porque na conferência anterior em 1994, a Conferência do Cairo, essa questão tinha sido considerada um grande avanço. E aí a Igreja Católica, o Vaticano tentou impedir que as propostas do Cairo pudessem estar nessa plataforma”.
As mulheres que representaram o país na luta pelos direitos femininos há 30 amos são unânimes em lembrar que o momento atual é diferente dos desafios já enfrentados, mas diante da possibilidade de mais retrocessos, garantem que haverá resistência.
“Não podemos retroceder sobre a importância de ter mecanismos institucionais para conduzir políticas para as mulheres, como ministérios e secretarias. Não podemos retroceder nos direitos humanos das mulheres, não podemos retroceder no debate sobre mulheres em meios de comunicação, mulheres em meio ambiente, os direitos das meninas e das adolescentes. Não tem como”, diz Wania Santana, ao concluir:
"Nós não seremos abatidas como se fôssemos ovelhinhas em um campo desprotegido. Vai ter luta."