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Depois de 10 anos, antiga sede do Dops no Rio caminha para tombamento
Prédio serviu para fins sombrios: detenção e tortura de presos
12/11/2025 10h30
Por: Tribuna Popular Fonte: Agência Brasil

Palco da repressão política no século passado, o edifício do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro do Rio de Janeiro, uma joia da arquitetura, terá o tombamento definitivo decidido no fim do mês. O martelo será batido na reunião do Conselho Consultivo, instância máxima do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no dia 26, com transmissão ao vivo pela internet. O processo tramita há mais de uma década no órgão.

O Iphan justifica o tombamento pela importância histórica e artística do imóvel e destaca o “papel simbólico (da edificação) nas lutas sociais e políticas em favor da democracia e da liberdade”, afirma o instituto em nota enviada à Agência Brasil. Com a medida, qualquer alteração no imóvel precisa ser comunicada e aprovada pela instituição.

Se efetivada, a medida atende também pedidos da sociedade civil e do Ministério Público Federal (MPF). Há mais de 40 anos, entidades de defesa dos direitos humanos reivindicam a instalação ali de um centro de memória que retrate a violência do Estado contra grupos sociais e políticos.

Inaugurado em 1910, de inspiração francesa, o edifício foi construído para ser a sede da Polícia Federal da época. Possui carceragens, com celas solitárias e salas de depoimento com isolamento acústico, por exemplo. A posse é do governo federal, mas o imóvel está cedido para a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro desde a década de 1960, sob a condição de uso para fins policiais e com a obrigação de preservação do imóvel.

Fechado há mais de uma década, o prédio está em estado de conservação precário desde pelo menos 2014, quando a Agência Brasil esteve no local, com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro.

Até o início dos anos 2000 chegou a funcionar no prédio um embrião de Museu da Polícia Civil, mas que não foi para a frente . Do local, mal acondicionado, foi resgatado nos anos 2020 o acervo da Coleção Nosso Sagrado. Foram retirados de lá mais de 500 objetos de religiões de matriz africana, apreendidos pela polícia fluminense entre 1889 e 1964, hoje sob a guarda de lideranças religiosas e do Museu da República, que é federal, após ampla campanha.

O Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação esteve no antigo Dops recentemente, durante vistoria do MPF, em 2024. Se, por um lado, a entidade se deparou com um prédio deteriorado, afrescos cobertos, vitrais quebrados, documentos empoeirados e ensacados e móveis embrulhados, por outro encontrou salas como foram deixadas pelos agentes da repressão. A entidade conseguiu recuperar parte dos documentos ensacados em parceria com o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj).

“O Dops tem muitos elementos autênticos”, disse Felipe Nin, do coletivo. “Desde que o prédio deixou de funcionar como a sede do Dops, ele não teve nenhum outro uso. A gente tem, em 2025, um prédio com todos os elementos originais de quando ele funcionava como uma repartição da repressão".

Segundo ele, estão lá os "armários de armamentos, com a inscrição Dops, insígnias, as carceragens, a sala onde os documentos foram produzidos pela inteligência, o mobiliário, a sala onde era o gabinete de Filinto Müller, com a mesa dele, o escaninho, é impressionante”, destacou. Ex-chefe da polícia de Getúlio Vargas, Müller era um verdadeiro carrasco, segundo os registros históricos, tendo sido responsável pela repressão a estudantes, indígenas e presos políticos, como Pagu, Carlos Mariguella, Graciliano Ramos, e fundamental na extradição de Olga Benário, judia, à Alemanha nazista.

O coletivo do qual Nin faz parte é autor da denúncia que deu origem ao inquérito do MPF, em 2024, para investigar o abandono do prédio e de documentos e a violação do direito à memória. Na investigação, a Polícia Civil apresentou ao órgão seu projeto de centro cultural que, segundo o pesquisador, é incompatível com o de um lugar de memória.

“É um projeto que exalta a Polícia Civil, a sua história, mas que não cita o Dops em nenhum momento, nem Müller, e que transforma a carceragem feminina, por exemplo, onde passou Olga Benário, Nilze da Silveira e muitas outras, em um bistrô”, disse Nin. “É um projeto de apagamento”, avaliou.

Com o tombamento, os espaços do prédio não poderão ser descaracterizados. A carceragem feminina, cujas paredes têm inscrições que datam dos anos 1950 e 1980, devem ser preservadas.

Segundo Nin, que é arquiteto, o prédio é um dos mais importantes da história política, tendo recebido opositores dos governos desde o início do século passado. Entre eles estão nomes como Nize da Silveira, Abdias Nascimento, Olga, Luís Carlos Prestes, durante o Estado Novo, sob o governo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945 e na ditadura militar. Vários foram também torturados no local, crime contra a humanidade para o qual o não há prescrição, de acordo com leis internacionais.

"Esse prédio representa um passado que o Estado brasileiro quis apagar, não quis enfrentar", disse Nin, que é também sobrinho de Raul Amaro Nin, preso arbitrariamente pela ditadura, que passou pelo Dops e morreu após tortura em 1971, sob custódia. "Por isso, é importante essa luta, para que essa memória seja lembrada, para que a gente possa mudar as instituições e para que esse tipo de atuação não se repita".

Com o tombamento, ele acredita que o imóvel ficará protegido de intervenções que não considerem o passado da repressão, enquanto a posse não é revertida pelo governo federal.

A farmacêutica Ana Bursztyn Miranda, que foi presa por três vezes no Dops, em função de sua atuação contra a ditadura, disse, em 2015, que um lugar de memória contribui contra a violência de Estado.

"A tortura, por exemplo, acontece ainda hoje. Precisamos conseguir diminuir a violência de Estado para que o terror que imperou naquela época não volte”, disse ela. Na época, Ana participou de protesto do Movimento Ocupa Dops para marcar o Dia Internacional de Combate à Tortura.

Em nota à Agência Brasil , a Polícia Civil confirmou o interesse no prédio e em instalar no imóvel um centro cultural, mas não detalhou o projeto.