No 20 de novembro, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul reafirma seu compromisso com a luta antirracista e com a valorização da população negra que constrói o Estado. Há 18 anos, a Lei Estadual 3.318/2006 , proposta pelo então deputado Amarildo Cruz, instituiu o Dia da Consciência Negra e consolidou um marco de reflexão e continuidade histórica.
Desde então, debates, políticas públicas e ações educativas têm se multiplicado — dentro e fora do Parlamento. Um desses marcos é o especial “ ALEMS Antirracista ”, criado em 2021 e atualizado neste mês, espaço permanente de estudo e enfrentamento das desigualdades raciais, reunindo análises, legislações, produções culturais e um manual de práticas antirracistas.
Territórios, ancestralidade e quilombos vivos
A história negra em Mato Grosso do Sul não se escreve apenas nas datas, mas nos territórios que resistem. Um dos mais simbólicos é a Comunidade Negra Tia Eva, fundada em 1905 por uma mulher que, após conquistar a liberdade, dedicou a vida a acolher outras pessoas negras. Sua força espiritual e comunitária se tornou um dos marcos da ancestralidade afro-brasileira no Centro-Oeste.
E é também por esses caminhos que os dados do Censo 2022 do IBGE ressoam:
Mato Grosso do Sul possui 2.572 pessoas quilombolas, cerca de 0,09% da população do Estado. Mais da metade — 1.401 pessoas — vive fora dos 11 territórios quilombolas delimitados, realidade que exige políticas que contemplem quilombolas urbanos e dispersos.
O Estado ainda possui o 2º maior índice do País de quilombolas vivendo em áreas urbanas dentro dos territórios reconhecidos: 28,20%, atrás apenas de Sergipe. Entre os territórios oficialmente identificados estão Tia Eva, Furnas do Dionísio, Colônia São Miguel, Chácara Buriti, Picadinha e outros.
Esses números evidenciam algo essencial: a presença quilombola em MS é diversa, viva e atravessa tanto a terra tradicional quanto a cidade contemporânea.
Educação, cultura e desigualdades estruturais
O presidente da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da ALEMS, deputado Professor Rinaldo Modesto (Podemos), reforça que a transformação antirracista passa, necessariamente, pela educação. Ele defende o cumprimento das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 — que tornam obrigatória a abordagem da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena — como ferramentas reais de mudança.
Os dados nacionais, também presentes no especial “ ALEMS Antirracista ”, tornam essa urgência ainda mais evidente:
– 55,4% da população brasileira é negra (pretos ou pardos), maioria demográfica que ainda enfrenta os maiores obstáculos de acesso.
– 69,2% das pessoas que recebem até um salário mínimo não concluíram os estudos, indicando como desigualdade de renda e escolaridade se entrelaçam.
Para Modesto, a escola precisa ir além de datas comemorativas e incorporar debates sobre raça e diversidade ao cotidiano pedagógico. Ele destaca que a Comissão tem realizado audiências, escutas com movimentos sociais, universidades e professores para acompanhar a implementação dessas diretrizes.
O parlamentar também chama atenção para a força da cultura negra sul-mato-grossense, que segue produzindo, resistindo e criando, mas ainda enfrenta desafios de visibilidade. Para ele, educação e cultura devem caminhar juntas, abrindo portas para artistas, projetos comunitários e iniciativas que alcancem escolas e territórios.
Trabalho, renda e a urgência da igualdade
A Comissão de Trabalho, Cidadania e Direitos Humanos da ALEMS, presidida pelo deputado Lidio Lopes (sem partido), reforça outro eixo dessa construção: o enfrentamento institucional ao racismo. Segundo ele, MS tem avançado em políticas públicas, canais de denúncia e conscientização social, mas os reflexos do racismo estrutural ainda são amplamente sentidos no Brasil e no Estado.
Os números confirmam essa desigualdade:
– 75% das pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil são negras;
– Entre a população desocupada, 63% são pretos ou pardos;
– A informalidade também atinge mais os negros: 46,8% das mulheres negras e 46,6% dos homens negros estavam em ocupações informais em 2023, enquanto entre brancos os índices foram menores (34,5% mulheres e 33,3% homens);
– Mesmo com nível superior completo, brancos ganham 45% a mais por hora do que negros com a mesma formação.
O parlamentar lembra ainda que muitas agressões migram para o ambiente virtual, onde o anonimato gera reincidência, e que o papel do Parlamento é garantir visibilidade às denúncias e fortalecer a aplicação da lei. Para Lidio, superar desigualdades raciais no mundo do trabalho exige qualificação, fiscalização e articulação de oportunidades reais para a população negra.
Violência, direitos e cidadania
A professora e pesquisadora da UEMS, Cíntia Diallo, referência nacional em estudos étnico-raciais, lembra que a educação antirracista precisa ultrapassar muros escolares e alcançar todos os espaços sociais. Os dados reforçam a urgência dessa compreensão:
– Em 2022, 76,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras;
– A taxa de violência letal contra pessoas negras foi 2,5 vezes maior do que entre não negras;
– 84,1% das mortes por intervenções policiais eram de pessoas negras;
– 66,4% das mulheres assassinadas no Brasil em 2022 eram negras;
– As mulheres negras têm 1,7 vezes mais chances de serem vítimas de homicídio;
– Na última década, houve redução de 24,2% nos homicídios de mulheres não negras, enquanto os índices entre mulheres negras seguem altos.
Para Diallo, reconhecer essas múltiplas camadas — estrutural, institucional, religiosa, recreativa, ambiental — é essencial para que políticas públicas sejam eficientes. Ela reforça a importância das ações afirmativas, da valorização da estética negra, da titulação de terras quilombolas e da ampliação de oportunidades profissionais para pessoas negras nas cidades.
O 20 de novembro, afirma, deve ser visto como um chamado à responsabilidade coletiva: “Não basta reconhecer o racismo — é preciso se posicionar.”
Racismo e injúria racial: a lei como instrumento de proteção
No enfrentamento a essas violências, a compreensão jurídica também é fundamental.
A Lei Federal 7.716/1989 tornou o racismo crime imprescritível e inafiançável, quando há discriminação dirigida a um grupo por raça, cor, etnia, religião ou origem.
Já a injúria racial, que ofende a honra de uma pessoa específica por elementos raciais, religiosos ou étnicos, foi equiparada ao crime de racismo pela Lei 14.532/2023 — com pena de reclusão de dois a cinco anos, sem possibilidade de fiança.
Legislação estadual: a contribuição da ALEMS para a igualdade racial
O Parlamento sul-mato-grossense tem sido protagonista na formulação de políticas públicas de enfrentamento ao racismo e valorização da cultura afro-brasileira. Entre as leis já aprovadas:
Lei 6.206/2024 (Mara Caseiro) – Cria o Estatuto da Mulher Parlamentar.
Lei 5.388/2019 (Pedro Kemp) – Estabelece sanções administrativas pela prática de discriminação racial.
Lei 5.254/2018 (Renato Câmara) – Institui o Dia Estadual das Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas (25 de julho).
Lei 5.216/2018 (Amarildo Cruz) – Cria o Cadastro Estadual de Condenados por Racismo ou Injúria Racial.
Lei 5.206/2018 (Amarildo Cruz) – Institui o Dia do Orgulho Crespo em MS.
Lei 5.094/2017 (Amarildo Cruz) – Altera a Lei dos Cultos Afro-Brasileiros.
Lei 3.926/2010 (Amarildo Cruz) – Dispõe sobre medidas de combate ao racismo em MS.
Lei 3.594/2008 (Amarildo Cruz) – Institui cotas nos concursos públicos (20% para negros e 3% para indígenas).
Lei 3.318/2006 (Humberto Teixeira) – Institui o Dia da Consciência Negra no Estado.
Lei 2.605/2003 (Pedro Kemp) – Reserva 20% das vagas na UEMS para alunos negros.
Lei 2.726/2003 (Pedro Kemp) – Estabelece diretrizes da Política de Cultura em MS, com proteção às expressões afro-brasileiras.
Movimentos sociais, democracia e representatividade
No movimento social, a presidente do Fórum Permanente de Entidades do Movimento Negro de MS, Romilda Pizani, reforça a centralidade da formação continuada e da luta cotidiana. Ela menciona as dificuldades na implementação da Lei 10.639/2003 e denuncia interpretações equivocadas que associam conteúdos afro-brasileiros à religião, reflexo de mitos racistas ainda persistentes.
Os dados eleitorais também revelam avanços e desafios:
– 52% dos candidatos nas eleições de 2024 se autodeclararam pretos ou pardos;
– Entre os eleitos nas capitais, 23,08% dos prefeitos se declararam negros;
– Para vereador, 26.789 pessoas negras foram eleitas (45,86% do total);
– No Congresso, nas eleições de 2022, 27 deputados federais pretos e 107 pardos ocuparam cadeiras — apenas 26,12% das 513 vagas;
– Nas assembleias legislativas, 30% dos candidatos negros foram eleitos em 2022.
Romilda alerta ainda para a violência institucional e para a ausência de pessoas negras em espaços de comando e decisão. Para ela, falar em trabalho, cultura ou segurança pública é falar de dignidade: “A população negra está nas periferias e nos mapas da violência. Segurança pública não pode ser sinônimo de extermínio.”
Arte negra: resistência que canta
A cantora e compositora Marta Cel traduz em sua trajetória a resistência cotidiana das artistas negras em MS. Ela relata convites sem cachê, desvalorização profissional e o desejo frequente de muitas instituições por sua presença estética, mas não por sua formação. Ainda assim, defende a potência da arte como caminho político e transformador.
E lembra o chamado de Conceição Evaristo: “Está na hora de parar de enxergar a existência do negro apenas como uma existência lúdica.”
20 de novembro
A ALEMS reafirma que a igualdade racial não é pauta de um dia — é projeto de país, de Estado, de futuro. É reconhecer a memória, a luta e a construção coletiva de quilombolas, artistas, pesquisadores, trabalhadores, professores e lideranças sociais.
É garantir que a história negra seja escrita com dignidade, permanência e voz.
Porque memória não é retorno: é impulso. É nela que se planta o amanhã.