Peixes saem pelo mar em busca da família de um deles, que se perdeu, e enfrentam uma série de obstáculos pelo caminho. Tem cheiro de reprise? De fato, o enredo não é nada original. O que explica, então, que Procurando Dory, a sequência de Procurando Nemo (2003) que estreia nesta quinta-feira no Brasil, tenha quebrado recordes nos cinemas americanos nas últimas duas semanas? Um pouco de nostalgia, com certeza. Nemo foi um fenômeno, com quase 1 bilhão de dólares em bilheteria (exatos 936,7 milhões, segundo o site especializado Box Office Mojo), popularização do peixe-palhaço, espécie que passou a ser adotada por crianças em todo o mundo, e até brinde do Mc Lanche Feliz. A qualidade do trabalho da Pixar, que pôde brilhar ao reproduzir em animação toda a riqueza do fundo do mar, deu outra contribuição. Mas o mérito é também - e talvez principalmente - dela, Dory, que prova aqui ser a melhor personagem da franquia.
É ela quem garante algum frescor aqui. Se há algo de diferente - e pode-se dizer melhor - neste filme é o fato de Dory conduzir a ação, com a sua incapacidade crônica de reter memória recente e o seu jeitão amável e destrambelhado. Atrapalhada que é, a peixinha sai à procura dos pais e acaba ela mesma se perdendo. E o roteiro é ágil em criar situações, uma atrás da outra, desse ponto em diante, divertindo e emocionando fãs antigos e adventícios. Se Procurando Dory tem uma estrutura muito similar à deProcurando Nemo, a boa notícia é que pode ser considerado um Procurando Nemo melhorado. No primeiro filme, boa parte das cenas é dominada pelo peixe-palhaço Marlin, o amargurado e chato pai de Nemo, e pelo peixinho do título, muito pequeno e fofo para ser um personagem atraente. O tempero da história cabe a Dory, que aqui tem chance de crescer e tomar o espaço que lhe cabe.
Para tanto, foi preciso dar a ela, vamos dizer, profundidade. A peixinha azul recupera um tiquinho da memória e com ela o seu passado, com o que ele tem de trágico e de triste - no que o longa também se aproxima de Nemo, iniciado com a morte da mãe e dos irmãos do protagonista. A história começa pouco depois do desfecho do primeiro episódio. Dory agora mora com Marlin e Nemo e acompanha o menino à escola todos os dias. É durante uma aula que, questionada sobre a sua família, Dory vai se lembrar de que, sim, ela também tem pai e mãe. A partir daí, acionadas por eventos diversos que funcionam como as madeleines de Proust - docinhos que quando comidos trazem à mente algo da vida do protagonista -, as lembranças da peixinha emergem em lampejos ao longo do filme e a conduzem na busca pelos pais e por ela mesma, pela peixinha que ela foi.
https://youtu.be/S2AVzedy53A
Lido assim, Procurando Dory pode parecer profundo como o mar, mas a Pixar sabe como ninguém tratar de assuntos difíceis com crianças. As piadas têm um nível igual ou melhor que as de Nemo. Acompanhada por Marlin e pelo filho, Dory cruza o oceano até a Califórnia, onde, ela afinal se lembra, vivia com os pais, azuis como ela. As cenas em que ela se recorda dos pais são mesmo bonitas. Dory, uma peixinha de olhos enormes, é treinada pelo pai e pela mãe para dizer que sofre de perda de memória recente e tentar voltar para casa, caso um dia se perca. Como já sabemos, isso não funcionou tão bem, mas os motivos e a maneira como ela se perde só são revelados aos poucos, à medida que fragmentos de memória ressurgem, entre uma agrura e outra enfrentada pela protagonista.
Dory se perde de Nemo e Marlin já ao chegar à Califórnia, quando, ao colocar a cabeça para fora da água, ouve a voz de... Marília Gabriela, como ela mesma. A cena, surreal, é uma das melhores da história. A jornalista e atriz é a voz padrão do Instituto de Vida Marinha, onde Dory morava com a família, até cair no oceano e se perder. Lá, ela reencontrará a amiga Destiny, com quem aprendeu a falar baleiês (sim, ela fala!), e fará um novo amigo, o polvo Hank, que tem grande presença graças à dublagem do humorista Antonio Tabet, do Porta dos Fundos.
Procurando Dory não muda a maneira de fazer cinema para criança, mas dá à peixinha azul o lugar que ela merecia desde o primeiro filme da franquia. O de dona da história.
*Veja.com
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