Nomeada pelo governo Bolsonaro em junho sob protesto de estudantes e professores que a consideram “interventora”, a reitora temporária da UFGD (
Universidade Federal da Grande Dourados) Mirlene Damázio está sendo acusada de passar por cima da lei, e, à revelia, reintegrar seis estudantes de medicina desligados por fraude.
Eles ingressaram na universidade por meio da lei de cotas, mas como não são pretos, nem pardos, muito menos indígenas, como exige a legislação, foram excluídos e o caso foi parar no Judiciário.
A reportagem apurou que a ex-reitora Liane Calarge rejeitou todas as tentativas de acordo propostas pelos alunos por terem ingressado na universidade através de fraude. Agora, no entanto, a reitora temporária deu novo desfecho à história e mandou reintegrar os acadêmicos.
A UFGD alega que a decisão foi tomada como solução consensual para acabar com o conflito e que a medida traz benefícios sociais (leia abaixo a nota completa da Universidade). Entretanto, a medida virou alvo de protesto nas redes sociais e novas manifestações já estão programadas pela comunidade acadêmica.
O caso – Conforme denúncia que chegou ao
Campo Grande News, os seis alunos reintegrados por ordem de Mirlene Damázio fraudaram as regras das cotas PPI (preto, pardo e indígena), foram reprovados por duas comissões da universidade e desligados.
“A reitora que deveria afastar corruptos, fechou acordo na calada com advogados dos alunos para que eles voltem a estudar. A
Faculdade de Medicina recebeu um e-mail de ordem dela para reincluir o povo”, diz a denúncia encaminhada à reportagem.
O
Campo Grande News teve acesso ao comunicado enviado pela Secretaria de Coordenação do
curso de medicina informando sobre a medida: “Boa tarde, professores! Por decisão de ordem da reitora pro tempore Mirlene, conforme termo de composição judicial recebido em 27/08/2019, segue abaixo a lista de alunos reintegrados e aptos a frequentarem as aulas no segundo semestre de 2019”. A lista tem os nomes e número de inscrição de seis alunos, dois da turma de 2016 e quatro da turma de 2018.
Conforme professores da UFGD consultados pela reportagem, esses alunos ingressaram na
faculdade pela lei de cotas através da chamada “autodeclaração”, já que na época não existia a comissão de avaliação étnico-racial.
Como a Universidade passou a receber várias denúncias, criou a comissão para avaliar os casos suspeitos. Alguns alunos foram mantidos, pois de fato pertenciam ao grupo PPI (preto, pardo ou indígena). Outros foram desligados e o caso parou na Justiça Federal.
A reportagem apurou que o procurador da República Eduardo Gonçalves propôs acordo com a então reitora Liane Calarge, para manutenção dos alunos na Universidade, independente de terem direito ou não às cotas. Pela proposta, quem não tivesse direito, após formado, deveria prestar serviços para a comunidade por dois anos, como “punição” pela fraude. Liane rejeitou todas as propostas e como desfecho os alunos foram desligados.
O Couni (Conselho Universitário), formado por 43 representantes da reitoria, dos professores, dos servidores administrativos, dos acadêmicos e da comunidade não acadêmica, negou recurso aos alunos, que permaneceram desligados até semana passada.
“Afronta à UFGD” – A professora Eugenia Portela de Siqueira Marques, que trabalhou por oito anos na UFGD e presidiu a comissão que invalidou a autodeclaração dos denunciados, considerou “muito grave” a decisão tomada pela reitora pro tempore.
“Estamos estarrecidos com a postura da reitora. Afinal, ela sabe de nossa luta, coordenou uma pós-graduação de inclusão. Se foi determinação judicial é compreensível a atitude dela. Agora, se foi por decisão autoritária, é uma afronta e total desrespeito à história da UFGD”, afirmou Eugenia, que é doutora em
educação, ex-presidente da Comissão de Heteroidentificação da UFGD e atualmente coordenadora do Grupo de trabalho de Educação e Relações Étnico-raciais da Associação Nacional de Pesquisadores da Pós Graduação.
Reitoria responde – Em nota enviada ao
Campo Grande News pela assessoria de imprensa, a reitora Mirlene Damázio confirma a reintegração dos alunos e justifica que a decisão traz proveitos sociais. Além disso, segundo ele, não seria mais possível reocupar as vagas por alunos comprovadamente pretos, pardos e indígenas.
Veja abaixo a nota da UFGD na íntegra: A UFGD, após denúncias de violação às regras do sistema de cotas de vestibulares de anos anteriores, cancelou a matrícula de diversos alunos do curso de medicina, cursando anos posteriores ao primeiro. Há registro de cancelamento de matrícula de alunos do segundo, terceiro e quarto anos. Como esperado, os acadêmicos procuraram o Poder Judiciário Federal, onde visavam a anulação do ato praticado pela UFGD e, consequentemente, a rematrícula. O Ministério Público Federal foi chamado a opinar nessas ações. Houve conflito entre as diversas decisões judiciais, que ora acolhiam a pretensão dos alunos, ora a rejeitavam, o que se deve a plausibilidade de ambas as teses defendidas em juízo. Na visão do MP, ambas as partes possuem sua parcela de culpa na presente situação. Os alunos por prestarem declarações não compatíveis com a realidade e a Universidade por ter demorado para fazer a verificação de veracidade da autodeclaração. Uma vez que a UFGD já teve gastos relevantes na formação dos alunos, gastos esses que não reverterão em proveitos sociais e demonstram dispêndio de grande monta de recurso público, sem proveito algum para a comunidade (por ser o curso de medicina o mais custoso da Universidade) e que as vagas deixadas por esses alunos não serão ocupadas, ou o serão por alunos da rede privada por meio de transferência, alunos esses possivelmente de melhor condição financeira que os excluídos (que, frisa-se, são oriundos da rede pública de ensino) e por não ser de interesse da UFGD deixar as vagas em aberto, (o que contrariaria, inclusive, o interesse público na formação de mais médicos) e que não há meio legal para destinar as vagas abertas a alunos cotistas pretos, pardos ou indígenas oriundos de outra IES, a postura da UFGD não reafirmará a política de cotas, pois essa já foi reafirmada com a instituição da comissão de verificação prévia a matrícula a partir do vestibular 2019. Isso significa dizer que manter os excluídos no curso não incentivará novas fraudes, pois o controle passou a ser prévio. Além disso, nenhum aluno preto, pardo ou indígena será beneficiado com a decisão da UFGD. Ou seja, a UFGD não está, com a sua decisão, promovendo a inclusão social de pessoas excluídas, mas sim está tão somente exercendo seu poder sancionatório. Considerando que a própria submissão à Comissão de Verificação, seguida da publicação da decisão já foi uma sanção bastante gravosa aos acadêmicos, pois gerou a exposição pública de seus erros, decidiu-se por submeter os alunos a prestações alternativas à expulsão e que trarão mais benefícios sociais do que esse ato extremo. Ou seja, é possível converter o erro do aluno em benefícios para a Universidade e para a sociedade como um todo. Até mesmo o direito penal convive bem com sanções alternativas e que cabe ao Ministério Público Federal promover a solução consensual de conflitos visando a resolutividade. Além disso, os termos do acordo geram ônus maior aos alunos infratores do que aos demais acadêmicos, punindo-os e também retirando desse ônus, proveitos sociais. Diante disso, a UFGD decidiu chegar a uma solução consensual ao conflito visando a pacificação social e uma decisão que traga benefícios sociais, evitando-se os riscos processuais inerentes a uma ação judicial dessa natureza. Os alunos se obrigarão a prestar serviços alternativos pelo número de meses correspondente ao que ainda irá cursar na Universidade até a conclusão de seu curso. Os serviços alternativos serão prestados exclusivamente após a conclusão do curso de medicina. Acordaram as partes que o serviço alternativo será voluntário e não remunerado de qualquer forma e consistirá na prestação semanal de 20 h de serviços médicos, na rede pública de saúde, preferencialmente em bairros pobres da região da Grande Dourados, aldeia indígena de Dourados e Hospital Universitário da UFGD. A admissão em programa de residência não prejudica nem posterga o cumprimento das obrigações assumidas pelos alunos, ou seja, não é motivo legítimo para o descumprimento do acordo o fato de o aluno ter sido admitido em programa de residência médica, de forma que tão logo ele obtenha o CRM deverá dar início à execução do acordado com a Instituição. *Campo Grande News